segunda-feira, 29 de julho de 2013

CRITÉRIOS PARA A AUTORIZAÇÃO DE CURSOS DE MEDICINA: UMA NOVA POSOLOGIA PARA ANTIGAS ENDEMIAS



Autores: Rafaella Marinelli Lopes[1]
Daniel Cavalcante Silva[2]

“Matar um homem para salvar o mundo não é atuar para o bem do mundo. Imolar-se a si mesmo, eis o que é agir bem.”
Confúcio

Recentemente o Governo Federal editou a Medida Provisória (MP) n.º 621, de 8 de julho de 2013, que institui o “Programa Mais Médicos” para o Brasil cujo objeto principal é a implementação de política pública voltada ao desenvolvimento da área médica em regiões defasadas dos provimentos mais básicos de saúde. O programa propõe a adoção de novos paradigmas para o avanço da saúde pública nacional, incluindo a criação de novas instituições de medicina e a formação elevada de médicos em áreas consideradas contingentes. Imbuído desse pretexto, a Medida Provisória traçou um novo marco regulatório para a autorização de cursos de medicina, o qual é totalmente diverso de todos os outros cursos no Brasil.
Como é cediço, o Decreto no 5.773, de 9 de maio de 2006, que dispõe sobre o exercício das funções de regulação, supervisão e avaliação das instituições de educação superior, servia de referencial regulatório para os processos de autorização dos cursos de graduação médica no país. A partir de julho de 2013, porém, dadas as alterações propostas pela MP n.º 621/2013, referido curso passou a ser uma excepcionalidade dentre as demais graduações, não sendo mais abalizado pelo decreto acima, conforme será explicado adiante.
Precedentemente, desde que observadas normas gerais da educação nacional e mediante autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público, os cursos de medicina dependiam somente da iniciativa privada para que fossem estabelecidos. Ou seja, o Ministério da Educação, por meio sua Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior (SERES), distribuía entre esses as funções de regulação do referido curso. O fluxo normal do processo para autorização do curso de medicina perpassava pelo caminho normal disciplinado pelo Decreto n.º 5.773, de 2006[3], rendendo observância à manifestação, teoricamente não vinculativa, do Conselho Federal de Medicina, previamente à autorização pelo Ministério da Educação. Esse era o procedimento até então utilizado.
O processo atual, porém, fora completamente alterado, não bastando a livre iniciativa da faculdade particular para que a graduação médica seja autorizada. Após a Medida Provisória 621/2013, o Poder Público delegou total competência ao Ministro da Educação para dispor de regulamentações abruptas quanto à abertura e autorização do funcionamento dos cursos de medicina no território nacional, até mesmo porque a suma moção do “Programa Mais Médicos” é distribuir os futuros profissionais em territórios carecidos dos provimentos mais essenciais à saúde.
Nas disposições gerais da referida Medida Provisória, dentre as diversas diretrizes propostas, está a de estabelecer mais recursos humanos na área médica, destinados aos seguintes objetivos: atender regiões prioritárias com carência de médicos, fortalecer a prestação de atenção básica de saúde, aprimorar a formação médica, inserir os médicos no SUS contatando-os com as políticas públicas nacionais, promover a troca de conhecimentos entre profissionais de saúde brasileiros e estrangeiros e estimular a área de pesquisa aplicada ao Sistema Único de Saúde. Ou seja, busca-se uma ampliação educacional e prática na formação médica, proporcionando maior adesão dos futuros profissionais à verdadeira realidade da saúde pública disposta pelo país. 
Não se podem perceber planos retroativos ou que ferem a independência do liberalismo profissional médico, como muitos contra-atacam, visto que as vagas de estudos e serviços estarão sendo concorridas por qualquer estudante de medicina com a pretensão de atender profissionalmente regiões precárias. Receberão, para tanto, bolsa-auxílio do governo federal e, acima de tudo, se beneficiarão do aprendizado na área pública de saúde e nas políticas públicas que nela são amplificadas. O que há, indiscutivelmente, é a fidedigna aspiração em pulverizar os futuros médicos em formação pelo país, a fim de acudir áreas completamente defasadas nos quesitos saúde e atendimento público.
Em princípio, a asserção do programa é projetar o estímulo à iniciativa das instituições privadas para a abertura de novos cursos de medicina em áreas ainda em desenvolvimento potencial. A prioridade, portanto, serão regiões com menor relação de médicos por habitante, desde que sejam capazes de ofertar campo de prática suficiente e com os instrumentos necessários aos alunos aprendizes. Este, porém, é um dos pontos conturbados e muito criticados do dispositivo publicado pela Presidência, pois, como é de conhecimento geral, a saúde pública no país é desprovida por completo dos seus recursos mais elementares. 
Contudo, de acordo com o projeto, para o desenvolvimento das ações oferecidas, diversos instrumentos de cooperação entre o poder público e outros organismos privados acondicionados à causa. Ou seja, o organismo público, levando em conta sua própria insuficiência programática e orçamentária, buscou se amparar em outros órgãos internacionais, instituições de ensino superiores nacionais e estrangeiras e outras entidades privadas para a concretização do seu projeto, inclusive no que diz respeito ao repasse de recursos financeiros a essas instituições, que se comprometerão também em fomentar essa política governamental.
Preliminarmente, tais cursos serão autorizados a se estabelecerem somente em regiões de extrema precariedade, não sendo passível a abertura de novas graduações médicas em locais saturados desses profissionais. No Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, primeiro colocado no equacionamento do número de médicos por habitante - estimado em 2,82 segundo o estudo “Demografia Médica no Brasil 2” e divulgado pelo Conselho Federal de Medicina -, torna-se impraticável a proposta do “Programa Mais Médicos”. Isto porque o Sudeste e o Sul brasileiros trazem grandiosos números de vagas em suas instituições, além de vultosos instrumentos para a formação “ensino-serviço” dos discentes que, mesmo depois de formados, permanecem agregados nessas localidades desenvolvidas por conta das vistosas ofertas de trabalho.
Para que ocorra a pré-seleção dessas extensões ineptas, onde serão instalados os cursos de medicina, o Ministério da Educação editou a Portaria Normativa no 13, a qual institui alguns procedimentos de apuração dos municípios que anseiem aderir ao programa por meio de instituições de educação superior privadas. Tais procedimentos adotados são pré-requisitos excludentes das cidades interessadas e compreendem a relevância e a necessidade sociais do curso ofertado em determinada região, assim como a estrutura dos equipamentos públicos e programas de saúde existentes e disponíveis. A apuração dos municípios aptos ao funcionamento desse tipo de graduação será de competência da Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior (SERES), assim delegada pelo próprio Ministro da Educação.
Após passar pelos critérios de admissão da SERES, competente pela apuração discorrida acima, o município requisitado deverá celebrar termo de adesão com essa mesma Secretaria com o objetivo de efetivar sua inclusão em edital de chamamento público. Eleitas as melhores propostas educacionais para a abertura dos cursos de medicina, serão publicados os nomes das instituições vencedoras, as quais serão subsidiadas pela estrutura do Serviço Único de Saúde (SUS) de cada regional selecionada. Caso a estrutura municipal convocada não contenha todos os elementos adequados e postos à disposição, a SERES também fica responsável pela verificação da disponibilidade de estruturas em outros municípios integrantes da mesma região.
Ademais, novas portarias serão editadas para direcionar minuciosamente os novos procedimentos de autorização. Por conseguinte, as mesmas portarias estarão aptas a alterar os demais órgãos públicos em suas anteriores competências com relação aos atos autorizativos dos cursos médicos. Entenda-se, porém, que a partir das novas alterações, se promovida à lei a referida medida provisória, o Ministro da Educação terá totais poderes de redirecionar todo o processo de autorização, congênere ao que aduz o artigo 3o da aludida medida.
Vivemos, certamente, uma situação de caos e desespero na saúde pública, tendo em vista que a mesma não tem a instrumentalização devida e é desprovida de recursos mais capitais, motivo pelo qual uma única esperança é latente: a mudança. Se não ocorrerem alterações nos planos de disposição das unidades básicas de saúde por todo o território nacional, a começar pelo atendimento básico, pelos recursos e profissionais capacitados a atenderem a rede pública, permaneceremos com regiões ainda sub-humanizadas e definhando ao descaso.
A perspectiva de autorização dos cursos de medicina com base na sistemática acima já é o começo das novas alterações na saúde pública que estão por vir e que irão surpreender ainda mais. Uma maior e melhor distribuição das faculdades de medicina e, consequentemente dos médicos em extensões precárias, é muito mais que investir basicamente na saúde. É, antes de tudo, iniciar a humanização de regiões brasileiras subdesenvolvidas, desprovidas do direito social mais básico do ser humano.
Por outro lado, a justificativa de apenas autorizar cursos de medicina em locais considerados prioritários pode abrir um perigoso precedente em outros cursos de graduação, que podem adotar o mesmo critério e, com isso, causar uma estagnação no setor. Da mesma forma, a adoção dos critérios acima também pode transformar o discurso da prioridade em um discurso meramente político, tendo em vista que essa posologia foi utilizada em um passado recente e não curou a endemia da falta de médicos em áreas efetivamente necessitadas.




[1]. Graduanda em Direito pela Universidade Paulista (UNIP) de São José do Rio Preto.
[2]. Sócio da Covac Sociedade de Advogados; Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo UniCEUB/DF; MBA em Direito e Política Tributária pela FGV/DF, Membro Honorário da Associação Internacional de Jovens Advogados (AIJA); Membro do Grupo de Pesquisa em Finanças Públicas no Estado Contemporâneo (GRUFFIC); Professor de Direito Tributário; Professor da Escola Superior da Advocacia OAB/DF; Autor de vários artigos nacionais e internacionais; Membro da Comissão do Terceiro Setor da OAB/DF. Laureado com o Prêmio Evandro Lins e Silva, concedido pela Escola Nacional de Advocacia do Conselho Federal da OAB. Indicado com um dos dez advogados mais admirados no setor de educação, Revista Análise Advocacia 500, 2012. Diversos títulos e prêmios obtidos no país e no exterior.
[3].  Art. 29.  São fases do processo de autorização:
I - protocolo do pedido junto à Secretaria competente, instruído conforme disposto no art. 30 deste Decreto;
II - análise documental pela Secretaria competente;
III - avaliação in loco pelo INEP; e
IV - decisão da Secretaria competente. 

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

ENSINO SUPERIOR PRIVADO: UMA ESTATIZAÇÃO SILENCIOSA




             Desde a segunda metade do século passado, não tão passado assim, o equilíbrio entre o setor público e privado na educação superior, em termos de instituições e matrículas, foi profundamente alterado diante da constatada expansão do ensino superior privado no país. Em 1980, o setor privado já era numericamente predominante, chegando a responder por cerca de 63% das matrículas e 77% dos estabelecimentos de ensino superior[1]. Após um breve período de estagnação, com a Constituição Federal (1988) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1966), o setor educacional privado voltou a crescer, correspondendo atualmente a 75% do total de matrículas no ensino superior[2]. Esses percentuais demonstram a importância das entidades privadas no desenvolvimento da educação no país.
            No entanto, em que pese a evidente importância das entidades privadas para o desenvolvimento do ensino superior nas últimas décadas, pode-se constatar que o poder público vem implementando uma série de medidas que depreciam e minimizam a livre iniciativa no desenvolvimento do ensino superior, chegando-se à constatação última de que o Estado vem estabelecendo uma estatização silenciosa no setor, conforme será explicitado adiante.
             Não convém conjeturar as ideologias político-partidárias por trás de tais procedimentos, entretanto, resta evidente que a recente tentativa de expansão do ensino superior por meio das instituições públicas, embora considerável, foi pífio, insuficiente e bastante aquém se comparado com o setor privado nos últimos anos. Para se ter uma ideia, os dados do Censo da Educação Superior, extraídos pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), revelam que enquanto as instituições públicas perderam 2% de alunos em 2011, na comparação com 2010, as entidades privadas cresceram 20%[3]. Trata-se de uma comparação que revela uma grande desproporcionalidade na gestão do setor público e privado no ensino superior.
            Com base nos dados acima, o Estado passou a adotar outra estratégia para consecuções públicas, adotando uma política de governo se como fora uma política de estado. Sob o manto de um vetusto aforismo[4] e da busca por uma certa qualidade na educação superior, o Estado passou a criar uma série de regras que não somente impõe controle às entidades privadas, mas também limitam a livre iniciativa. Essa limitação pode ser constatada por meio de um escalonamento de regras, as quais evidenciam o monopólio total do estado sobre o setor, o que se consubstancia em um curioso conceito de estatização do setor educacional privado.
            Como é cediço, para que uma Instituição de Ensino Superior (IES) possa funcionar é necessário o ato administrativo de credenciamento e de autorização dos cursos, ambos exarados pelo Ministério da Educação. Ao credenciar uma instituição, no entanto, o MEC autoriza o funcionamento de no máximo cinco cursos[5]. Para pedir novos cursos, a IES deve ter ao menos 50% dos cursos já autorizados devidamente reconhecidos[6], caso contrário, o pedido de autorização de novos cursos será sumariamente arquivado. Essa é uma regra criada por meio de uma Portaria, a qual simplesmente estabelece critérios limitadores da Lei n.º 9.304, de 20 de dezembro de 1996 (LDB), do Decreto n.º 5.773, de 9 de maio de 2006[7] e, principalmente, do art. 209 da Constituição da República, que dispõe que o ensino é livre a iniciativa privada, atendida as condições de cumprimento das normas gerais da educação nacional, autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público. Nesse sentido, questiona-se: é possível uma portaria normativa estabelecer normas gerais da educação nacional?
            A criação de cursos de graduação em direito e em medicina, odontologia e psicologia, inclusive em universidades e centros universitários, ainda deverá ser submetida, respectivamente, à manifestação do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ou do Conselho Nacional de Saúde, previamente à autorização pelo Ministério da Educação. A limitação ainda é maior.
            Imbuído desse espírito restritivo à livre iniciativa privada, o Ministério da Educação também exarou a Portaria Normativa n.º 1, de 25 de janeiro de 2013, a qual estabelece pequenos prazos para que uma entidade mantedora possa requerer a expedição de atos regulatórios (credenciamento, recredenciamento, autorização, reconhecimento, etc.) pelo MEC. De acordo com referido ato normativo, uma entidade mantenedora terá apenas dois meses durante o ano para solicitarem que o Ministério da Educação exare algum ato regulatório, a exemplo da autorização de novos cursos.
            Ou seja, se uma instituição desejar solicitar a abertura de novos cursos, terá que fazer o pedido nas janelas que se abrem em apenas dois meses durante todo o ano, de acordo com os prazos fixados nos anexos da referida portaria. Dentre as várias regras vinculadas à Portaria Normativa n.º 1, de 25 de janeiro de 2013, está aquela segundo a qual os prazos acima somente serão exercidos na hipótese de não ocorrência de impugnações ou recursos. Em outras palavras, além das limitações inicialmente impostas às IES na ocasião do seu credenciamento e autorização de novos cursos, o MEC estabelece novas condições que limitam o período para a prática de atos regulatórios e também estabelece, de maneira enviesada, cerceamento ao direito de defesa quando uma entidade ou algum de seus cursos solicitados forem mal avaliados.
            As medidas estabelecidas pelo poder público para os atos de credenciamento de novas instituições e abertura de novos cursos se consubstanciam em um evidente limite imposto à iniciativa privada, uma vez que restringem a liberdade da entidade mantenedora provocar ou pedir um ato administrativo ao poder público.
            Por outro lado, em outra posologia, para que uma instituição possa ofertar o ensino superior, a LDB estabelece que entidade ainda possua capacidade de autofinanciamento[8], ou seja, a capacidade de geração de resultados econômicos operacionais que possibilitem financiar inteiramente, ou grande parte, o capital de giro e os investimentos necessários para a manutenção dos cursos superiores com a qualidade almejada pelo MEC. Essa exigência, somada com a livre concorrência, faz com que as instituições venham a aderir as políticas públicas criadas pelo Estado, como o Programa Universidade para Todos (Prouni) e o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). Sem a adesão a tais programas é praticamente inviável que uma IES possua capacidade de autofinanciamento e de mantença de um curso superior com a qualidade exigida pelo MEC. A reste respeito, o Ministério da Educação tem plena consciência disso.
            Sendo o Programa Universidade para Todos (Prouni) uma política pública necessária e vital para as entidades privadas de ensino superior, essas têm a obrigação de se submeterem às suas regras, calcada em um sinalagma entre troca de bolsas de estudo e isenção fiscal. A instituição que aderir ao Prouni tem a obrigação, dentre outras, de possuir certidão de regularidade fiscal e não ter cursos com avaliação insatisfatória, nos termos da Lei do SINAES[9].
            Da mesma forma, sendo o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) igualmente vital para a manutenção das IES, resta patente que as entidades também devem render atendimento às regras da Lei nº 10.260, de 12 de julho de 2001, que instituiu o Fies, o qual possui natureza contábil e que é destinado à concessão de financiamento a estudantes regularmente matriculados em cursos superiores não gratuitos e com avaliação positiva nos processos conduzidos pelo Ministério da Educação, de acordo com regulamentação própria.
            As instituições que aderem ao Fies com o objetivo de manter a sua capacidade de autofinanciamento passam a depender de critérios extremamente subjetivos para que o Governo Federal possa efetuar a recompra dos créditos das bolsas ou da compensação de créditos tributários. Ou seja, a instituição que adere ao Fies fica adstrita ao bom humor do Governo Federal na ocasião do adimplemento de sua parte no programa. Nesse caso, o Fies denota uma total dependência das IES ao Governo Federal, fazendo com que as entidades se submetam a critérios inexistentes na lei, a exemplo do prazo para o pagamento dos créditos do programa (recompra ou compensação tributária).
            Sendo o Prouni e o Fies políticas públicas determinantes para subsidiar a capacidade de autofinanciamento das IES, sobretudo porquanto o próprio MEC eleva sobremaneira os custos da entidade em busca de uma “qualidade” equiparável às entidades públicas, quase nunca penalizadas, fica constatado que o MEC se arvora desse dois programas para impor exigências, algumas vezes ilegítimas, a exemplo da exigência de Certidões de Regularidade Fiscal. Ora, se os programas acima visam equacionar problemas decorrentes justamente do equilíbrio econômico-financeiro de uma IES, a exemplo do pagamento de tributos, não se afigura razoável exigir as referidas certidões. Nesse caso, o MEC passa a atuar como agente da Receita Federal, desvirtuando a sua finalidade regulatória e fiscalizatória. Esse desvirtuamento de função já foi rechaçado pelo Supremo Tribunal Federal em diversas ocasiões em que um determinado órgão público se arvorava na condição de fiscal da Receita Federal.
            O que se pode notar é que o MEC passa a fazer exigências ilegítimas com o objetivo de limitar as atividades da iniciativa privada.
            Em outra situação não menos elucidativa, o Governo Federal aprovou o chamado Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento das Instituições de Ensino Superior (Proies), instituído por meio da Lei nº 12.688, de 18 de julho de 2012, cujo escopo visa assegurar condições para a continuidade das atividades de entidades mantenedoras de ensino superior com dificuldades financeiras. O Proies é um programa de recuperação tributária, com evidente inspiração na Lei de Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência, regulada pela Lei n.° 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, prevendo ainda a concessão de moratória e parcelamento de débitos. O programa pode ser atrativo para a entidade que esteja em dificuldades financeiras, mas, ao mesmo tempo, bastante restrito e com sérias implicações para a instituição que aderir ao parcelamento, haja vista que as consequências da sua saída após adesão de forma voluntária e ou involuntária são nefastas.
            Os requisitos para manutenção no Proies abrangem praticamente todas as esferas de atuação de uma mantenedora de entidade de ensino superior[10] e outorga ao Ministério da Educação poderes de fiscalização quase que absolutos. No modelo criado pelo Proies, o MEC passa a funcionar como um interventor de fato e a instituição abre mão de qualquer planejamento ou projetos de expansão em favor do fiel cumprimento do plano de recuperação apresentado.
            A instituição que aderiu ao Proies assumiu obrigações que revelam o alto grau de comprometimento da vida financeira da entidade com os programas do Governo, tais como: concessão do Prouni com bolsa integral, adesão ao Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) com 100% aberto à demanda de bolsas e adesão ao Fundo de Garantia de Operações de Crédito Educativo (FGEDUC). Esse alto grau de comprometimento pode levar à situação de que uma instituição aderente possa funcionar por meio da concessão de 100% de bolsas do Prouni, do Proies e participantes do FIES, além da limitação de sua autonomia administrativa. Seria uma forma de total estatização de uma entidade privada.
            Por fim, não bastassem todas as formas de controle das entidades privadas de ensino superior, o Governo Federal ainda encaminhou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei (PL) n.° 4.372/2012, que propõe a criação do Instituto Nacional de Supervisão e Avaliação da Educação Superior (Insaes). O projeto prevê a submissão de praticamente todos os atos de uma entidade privada de ensino superior a esta nova autarquia, a qual assume o status de agência sem o ônus a esta atribuída. O PL n.° 4.372/2012, em seu art. 3º, estabelece de maneira objetiva as competências do Insaes, que seriam as seguintes:
       I - formular, desenvolver e executar as ações de supervisão e avaliação de instituições de educação superior e cursos de educação superior no sistema federal de ensino, de acordo com as diretrizes propostas pelo Ministério da Educação, e em consonância com o Plano Nacional de Educação;
       II - expedir instruções e estabelecer procedimentos para a aplicação das normas relativas à sua área de competência, de acordo com as diretrizes do Ministério da Educação;
       III - autorizar, reconhecer e renovar o reconhecimento de cursos de graduação e sequenciais;
       IV - instruir e exarar parecer nos processos de credenciamento e recredenciamentos de instituições de educação superior;
       V - acreditar instituições de educação superior e cursos de graduação;
       VI - realizar avaliações in loco referentes a processos de credenciamento e recredenciamento de instituições de educação superior e de autorização, reconhecimento e renovação de reconhecimento de cursos de graduação e sequenciais, e diligências para verificação das condições de funcionamento dessas instituições e cursos; e
       VII - supervisionar instituições de educação superior e cursos de graduação e sequenciais, quanto ao cumprimento da legislação educacional e à indução de melhorias dos padrões de qualidade da educação superior, aplicando as penalidades e instrumentos previstos na legislação;
       VIII - decretar intervenção em instituições de educação superior, e designar interventor, nos termos de lei específica;
       IX - designar, após indicação do Ministério da Educação, instituição de educação superior pública para a guarda do acervo acadêmico de instituições descredenciadas, conforme regulamento;
       X - conceder, renovar concessão e supervisionar a regularidade do Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social - CEBAS, quanto às entidades de educação superior e de ensino básico, observados os requisitos e a sistemática da Lei no 12.101, de 27 de novembro de 2009;
       XI - constituir e gerir sistema público de informações cadastrais de instituições, cursos, docentes e discentes da educação superior, e disponibilizar informação sobre a regularidade e qualidade das instituições e cursos da educação superior e a condição de validade de seus diplomas;
       XII - aprovar previamente aquisições, fusões, cisões, transferências de mantença, unificação de mantidas ou descredenciamento voluntário de Instituições de Educação Superior integrantes do sistema federal de ensino; e
       XIII - articular-se, em sua área de atuação, com instituições nacionais, estrangeiras e internacionais, mediante ações de cooperação institucional, técnica e financeira bilateral e multilateral.

            É importante esclarecer que as competências e atribuições do Insaes são demasiadamente genéricas, pois serão objeto de regulamentação posterior. Embora seja uma proposta bastante subjetiva, não se pode dizer que o Projeto de Lei n.° 4.372/2012 seja uma proposta principiológica, haja vista que o subjetivismo proposta sugere que toda a regulação deva ser feita por meio de decreto ou outro ato normativo. De acordo com a nova estrutura proposta, o Insaes assumiria toda a competência de avaliação hoje desenvolvida pelo INEP, além das competências de regulação e supervisão. Em outras palavras, o novo instituto teria competência para avaliar, exarar o ato regulatório (credenciamento, autorização de curso, etc.) e supervisionar as instituições, além de intervir em todos os atos privados das entidades, cobrando taxa de legalidade contestável sobre essa atividade fiscalizatória.
            Com base nas constatações fático-legais acima, pode-se observar que o Estado adotou uma estratégia restritiva à livre iniciativa no ensino superior, transformando os mecanismos regulatórios em mecanismos restritivos à atividade educacional privada. O Estado regulador que hoje se propõe, segundo as teorias socioeconômicas modernas, não visa restringir direitos à livre iniciativa, mas regular o mercado para a concorrência. A utilização do controle pelo Ministério da Educação, sob o manto da busca de uma pseudo qualidade da educação superior, ultrapassa os limites da mera regulação e incide no conceito de estatização de parte das instituições privadas.
            Ao superdimensionar e concentrar a avaliação, regulamentação e supervisão do ensino superior, sobretudo em face do novo instituto que está em vias de criação (Insaes), o MEC passa a interferir diretamente em todas as esferas de atuação de uma entidade mantenedora de ensino superior, restando muito pouca, ou quase nada, liberdade à livre iniciativa, situação esta que subsume-se em um silencioso quadro estatização no setor.




[1]. Sampaio, Helena. Ensino superior no Brasil – o setor privado. São Paulo: Fapesp/Hucitec, 2000.
[2]. O setor privado de ensino superior no Brasil: continuidades e transformações. Revista Ensino Superior. São Paulo: 2011. Disponível em: http://www.revistaensinosuperior.gr.unicamp.br/artigos/o-setor-privado-de-ensino-superior-no-brasil-continuidades-e-transformacoes#_ftnref7 Acesso em 28 de janeiro de 2013.
[3]. Dados para o futuro. Revista Ensino Superior. São Paulo: 2012. Disponível em: http://revistaensinosuperior.uol.com.br/textos.asp?codigo=12368. Acessado em 28 de janeiro de 2013.
[4]. “Se não der para vencê-los, junte-se a eles.”
[5]. Art. 8º, §1º, da Portaria Normativa n.º 40, de 12 de dezembro de 2007, republicada em 29 de dezembro de 2010.
[6]. Art. 11-A, §3º, da Portaria Normativa n.º 40, de 12 de dezembro de 2007, republicada em 29 de dezembro de 2010.
[7]. Dispõe sobre o exercício das funções de regulação, supervisão e avaliação de instituições de educação superior e cursos superiores de graduação e sequenciais no sistema federal de ensino.
[8]. Art. 7º, III, da Lei n.º 9.304, de 20 de dezembro de 1996.
[9]. Lei n.º 10.861, de 14 de abril de 2004, que institui o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES).
[10]. Art. 8o  A manutenção da instituição no Proies é condicionada ao cumprimento dos seguintes requisitos, por parte da mantenedora da IES, sob pena de sua revogação: 
I - regular recolhimento espontâneo de todos os tributos federais não contemplados no requerimento da moratória; 
II - integral cumprimento do plano de recuperação econômica e tributária; 
III - demonstração periódica da capacidade de autofinanciamento e da melhoria da gestão da IES, considerando a sustentabilidade do uso da prerrogativa disposta no art. 13, nos termos estabelecidos pelo MEC; 
IV - manutenção dos indicadores de qualidade de ensino da IES e dos respectivos cursos; e 
V - submissão à prévia aprovação dos órgãos referidos no parágrafo único do art. 5o de quaisquer aquisições, fusões, cisões, transferência de mantença, unificação de mantidas ou o descredenciamento voluntário de qualquer IES vinculada à optante. 
Art. 9o  O plano de recuperação econômica e tributária deverá indicar, detalhadamente: 
I - a projeção da receita bruta mensal e os respectivos fluxos de caixa até o mês do vencimento da última parcela do parcelamento de que trata o art. 10; 
II - a relação de todas as dívidas tributárias objeto do requerimento de moratória; 
III - a relação de todas as demais dívidas; e 
IV - a proposta de uso da prerrogativa disposta no art. 13 e sua viabilidade, tendo em vista a capacidade de autofinanciamento.