quarta-feira, 29 de agosto de 2012

O SISTEMA FEDERATIVO E A FORMA DISPENDIOSA DE GOVERNAR



            A Federação constitui um tipo de Estado composto que é divisível em partes internas e que são unidas entre si por um vinculo de sociedade. Grande quantidade de países admite esta solução, a começar pelos Estados Unidos da América com sua Lei Magna de 1787.
            Sob o ponto de vista conceitual, pode-se chegar à seguinte definição do Estado Federal: “o Estado Federal é uma organização, formada sob a base de uma repartição de competências entre o governo federal e os governos estaduais, de sorte que a União tenha a supremacia sobre os Estados-Membros, e estes sejam entidades dotadas de autonomia constitucional.” (FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Constitucional. 7ª Ed., São Paulo: Editora Saraiva, 1995, pág. 262.)
            A vocação histórica do Brasil para o federalismo surgiu, principalmente, em virtude das próprias condições geográficas do país, pois a imensidão territorial e as condições naturais obrigaram a descentralização, que é base do regime federativo. A causa social da origem do federalismo é a própria imensidão territorial, obrigando a descentralização de governo, a fim de manter a pluralidade das condições regionais e o regionalismo de cada zona, tudo integrado na unidade nacional do federalismo.
            Durante o período histórico da dominação portuguesa, o Federalismo decorreu a partir de uma criação social que correspondia às aspirações descentralizadoras, a exemplo da Guerra dos Farrapos, Revolução Praieira, Confederação do Equador, entre outras. A sufocante asfixia administrativa portuguesa passou a ser um perigo à própria unidade nacional. Em razão disso, o Império deu origem aos Atos Adicionais que outorgavam autonomia a certas coletividades integrantes do governo, como os Conselhos-Gerais, entre outras. Foi com essa estrutura que as províncias viveram durante a longa existência dos dois reinados, até a Revolução de 1889, transformando-as em Estados-Membros.
            Desta feita, a Constituição Federal de 1891, em seu art. 63, instituiu que cada Estado-Membro reger-se-ia pela Constituição e pelas leis que adotar, respeitados os princípios constitucionais da União. A Federação, então, pressupunha a existência de várias ordens jurídicas autônomas e harmonicamente independentes, como ocorre hoje em dia.
            Amiúde o desenvolvimento histórico do Federalismo no Brasil, a Constituição de 1988 inovou ao estabelecer o pacto federativo, tradicionalmente feito pelos Estados-Membros, criando a União e incluindo os Municípios. Ao incluir os Municípios, foi propiciada a autonomia político-administrativa destes, consagrando-os no elenco de entes federados.
            O regime federativo constitui uma forma de Estado de grande importância no mundo moderno, daí resultando sem dúvida a vitalidade do vínculo de atribuições de competências. Verifica-se, por conseqüência, a diversidade da organização que se efetua no regime federativo em vários países, sem desmantelo da sua técnica, antes atendendo às necessidades dominantes em uma determinada época.
            Para o cumprimento dos fins do regime federativo, é indispensável que se estabeleça uma divisão ou uma repartição de competências entre a União e os Estados-Membros para que não se processem conflitos desagregadores do regime e a ruína do aparelhamento administrativo. Daí a importância da ordem jurídico-constitucional das competências.
            Entenda-se por competência a capacidade jurídica de uma corporação pública ou ente federado para agir. Em que pese a gama de competências atribuídas à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, uma das mais importantes competências diz respeito ao poder de tributar. Eis que surge o que convencionamos a chamar de Federalismo Fiscal.
            O Federalismo Fiscal pressupõe a atribuição aos entes federados de competência tributária suficiente para propiciar arrecadação tributária adequada para o cumprimento de suas atribuições, obedecendo aos anseios e peculiaridades de cada região.
            Pela atribuição de competência divide-se o próprio poder de instituir e cobrar tributos. Entrega-se à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios parcelas do próprio poder de tributar. A faculdade de instituir tributo passa pelo princípio do Poder-Dever, atribuído pela Constituição, para que determinado ente da Federação possa instituir certo tributo.
            A técnica de atribuição de competência é de grande importância porque tem a virtude de descentralizar o poder político, mas tem o inconveniente de não se prestar como instrumento para a minimização das desigualdades econômicas entre os Estados e os Municípios. Além disso, torna dispendiosa a forma de governar o país, conquanto não há um controle da relação entre receita e despesa, o que causa déficit nas contas públicas.
            Ressalta-se que a fragmentação partidária em nosso país, provocada não apenas pela heterogeneidade estrutural da sociedade, mas também pela permissiva legislação eleitoral, somando-se com o fato de que Estados e Municípios constituem um poderoso fator potencial de descontrole do déficit público devido ao seu grande peso dentro do setor público, são fatores que agregam à forma dispendiosa de governar o país.
            Eis que surge também a “guerra fiscal” entre os Estados, mediante a manipulação do ICMS e a concessão de benefícios disfarçados em forma de empréstimos subsidiados e até participações acionárias. A “guerra” deflagrada, sob os auspícios do federalismo, tem óbvias vantagens, como a localização de mercado e a infra-estrutura social e econômica dos Estados em relação aos menos desenvolvidos, o que torna dispendiosa a administração.
Não se pode olvidar que, ao Estado pobre, em cujo território não é produzida, nem circula, riqueza significativa, de nada valeriam todos os tributos do sistema sem a justa distribuição de riquezas. Por isto é que se fez necessária também a distribuição de receitas tributárias. Pela distribuição de receitas, o que se divide entre a União, Estados e Municípios é o produto da arrecadação do tributo por uma delas instituído e cobrado.
            Na verdade, existem duas formas de participação de uma pessoa política no produto da arrecadação de outra: a direta e a indireta. A forma direta impõe uma relação simples. Exemplo: os Municípios fazem jus a 25% do ICMS do Estado arrecadado em seus territórios. A forma indireta impõe uma relação complexa: são formados por fundos aos quais afluem parcelas de receitas de dados impostos. Depois, são rateados entre os partícipes beneficiários segundo critérios legais preestabelecidos.
            Por outro lado, tendo à União sido reservada parcela maior da competência tributária, os Estados-Membros e os Municípios, todavia, participam do produto da arrecadação de diversos impostos federais. No entanto, a técnica de distribuição de receitas tem o inconveniente de manter os Estados e os Municípios na dependência do Governo Federal, a quem cabe fazer a partilha das receitas tributárias mais expressivas.
            O problema tende a agravar ainda mais se o Governo Federal aprovar a comentada reforma tributária, o que concentrará ainda mais o poder de tributar nas mãos da União, logrando aos Estados e Municípios o ônus de viver em constante “negociação política” com o Governo Federal. 
            Na verdade a questão não se subsume ao centralismo fiscal, mesmo porque não haveria como gerir e administrar concentradamente diante das peculiaridades de um país tão heterogêneo e de dimensões físicas e populacionais tão grandes.
            O grande desafio para a federação brasileira passa a ser, portanto, como conciliar a descentralização fiscal, maior ou menor, com os objetivos nacionais e racionais da política econômica. Esse é um problema ainda não equacionado. O que tem que acabar urgentemente é a sangria desatada criada historicamente pela União, que age como uma espécie de “emprestadora de última instância de Estados e Municípios em situação de falência”, acabando, por conseguinte, com o comportamento fiscal permissivo.
            O diagnóstico parece se traduzir em medidas conciliadoras, no entanto, sem perder o vigor fiscal, aperfeiçoando o sistema federativo fiscal e dando ênfase aos mecanismos de controles fiscais. O exemplo disso está esculpido no art. 160 da Constituição, que veda à União Federal a “negociação política” na entrega das receitas cabentes a Estados e Municípios, sob as penas da lei, providência de resto salutar, pois o Governo Federal sempre usou o processo de entrega dessas parcelas para obter vantagens políticas e, quem sabe, econômicas, favorecendo a corrupção e em benefício de uns poucos.
            O federalismo fiscal brasileiro projeta o quadro geral da economia do país, da sociedade e do sistema político. A política do atual Governo Federal em relação à questão federativa tem, de fato, procurado enfrentar os problemas mais candentes, embora dentro de uma estratégia de ação gradual, relativamente prudente e mais custosa do ponto de vista financeiro.
            Enfim, a federação brasileira, diferentemente do que acontece com outros países, aparenta ser inconclusa, mas exibe traços de razoável estabilidade. É por esse motivo que o federalismo fiscal é sempre invocado na defesa de interesses localizados e de políticas públicas de impacto regionais.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

O MANDATO REPRESENTATIVO POPULAR E O MANDATO REPRESENTATIVO DO ADVOGADO: UMA CURIOSA ANALOGIA



            A evolução política do homem passou por uma série de transformações ao longo da história. Neste ínterim, engendrou-se experiências políticas, como a teoria aplicada no regime feudal, na monarquia, no parlamentarismo, enfim, em todos os regimes representativos. Entretanto, por mais que houvesse diversidade nas condições sociais e históricas de cada país ou Estado, sempre se considerou a premissa da representatividade como a viga fundamental de qualquer regime político.
            O regime representativo, independentemente de sua diversidade, é um pressuposto da deliberação popular, que, por ordem natural de unanimidade política, elege ou depõe um presidente ou, até mesmo, um rei. Nesse sentido, o regime representativo possui a sua base propedêutica no “pacto social”, difundido por Jean-Jacques Rousseau, com a seguinte finalidade:
“Achar uma forma de sociedade que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada sócio, e pela qual, unindo-se cada um a todos, não obedeça, todavia senão a si mesmo e fique tão livre como antes”. 1

            O contrato social induz à suprema direção da vontade geral, fazendo com que esta “associação” produza um corpo moral e coletivo. A pessoa pública formava-se pela união da vontade de todas as outras pessoas e o corpo político, o qual era por seus membros chamado de Estado, representava a soberania do povo.
            Com o decorrer da história, como alhures explicitado, vários regimes representativos foram se sobrepondo, mas sempre com a ideia basilar da deliberação pública como forma de manutenção do pacto social. Hodiernamente os pilares políticos são os mesmos, com uma roupagem diferente, mas com a mesma ideologia representativa.
            Na acepção política, a expressão “regime representativo” designa o sistema constitucional no qual o povo se governa por intermédio de seus eleitos. Esse regime implica, portanto, em certa participação dos cidadãos na gestão da coisa pública, participação que se exerce na forma e na medida da unanimidade política. O ponto de vista jurídico possui um paradigma semelhante, como ensina o Prof. Darcy Azambuja, verbis:
“Do ponto de vista rigorosamente jurídico, o regime representativo repousa na presunção legal de que as manifestações da vontade de certos indivíduos ou grupo de indivíduos têm a mesma força e produzem os mesmos efeitos como se emanassem diretamente da nação, em que reside a soberania”. 2

            Os substratos gerais da representatividade pública estão na soberania nacional, na vontade geral e no “eu comum”, que seria a unidade da vontade geral, descrita por Rousseau. A nação delega o exercício do poder aos seus representantes, continuando, porém, como a fonte de toda autoridade.
            A ideia de eleger representantes incide em um curioso conceito de mandato. Deve-se entender o termo “mandato” em sentido amplo, em que a nação seria o mandante e os indivíduos eleitos seriam os mandatários, englobando, inclusive, os representantes públicos que exercem cargos de confiança, os concursados e os que atuam em nome do “eu comum”. Parafraseando o Professor Azambuja, passa-se para o Direito Público um instituto de Direito Privado, procurando afeiçoar às suas regras gerais os fenômenos de ordem política que integram a organização e o funcionamento do regime representativo.
            Neste caso, o mandato seria o dever dos mandatários em suprir as aspirações dos mandantes, ou seja, um mandato representativo. É dever dos mandatários responder aos mandantes pela maneira como cumpre o mandato e pelo modo como exerce as funções legislativas. Tem-se, em tese, por um mandato representativo as características usuais de um mandato-contrato, o qual tem a mesma ideologia do contrato social.
            Entretanto, como toda tese tem sua antítese, nas relações que se estabelecem entre a nação e os eleitos, juridicamente, não há vinculação entre mandante e mandatário, outorgante ou procurador. Primeiro porque o mandato pressupõe uma pessoa que outorga e outra que recebe para executar, assim, um deputado representa toda a nação e não somente aqueles que o elegeu. Segundo, a revogabilidade pelo mandante, em que um representante (deputado ou senador) não pode ser destituído diretamente pelos seus eleitores, embora os eleitores possam encetar providências políticas para tal intento. E terceiro, no regime representativo o representante eleito não fica adstrito à vontade de seus eleitores, o que enseja, por exemplo, casos de improbidade administrativa sem que haja a devida punição.
            Já o mandato advocatício tem uma característica bastante peculiar, pois envolve um tipo de mandato-contrato e de um mandato representativo de múnus público, sendo este uma atribuição peculiar inerente ao advogado. O mandato advocatício perpassa a simples barreira de uma relação contratual, incidindo também na responsabilidade adquirida pelo advogado perante a sociedade em virtude de seu múnus público adquirido. Surge, então, a função social do advogado como se derivasse da vontade da sociedade, formando um corpo moral e ético esperado na atuação advocatícia diante do foro.
            Fazendo uma analogia ao mandato representativo popular, segundo a teoria de Montesquieu, logo que fossem escolhidos os representantes do povo para assumirem tão privilegiado múnus público, estariam prontos para governarem com inteira independência, tendo os seus atos e resoluções não dependentes de ratificação popular, pois são tidos como a própria expressão da soberania nacional.
            O mandato advocatício conota uma certa independência do Advogado em seus atos, tal como o mandato representativo popular, sendo os atos e procedimentos do Advogado uma expressão do seu representado perante os tribunais e demais esferas da justiça. A independência do advogado diante do processo transcende o âmbito forense, incidindo também no papel harmonizador das relações sociais. O art. 133 da Constituição Federal é bastante claro quando preconiza a indispensabilidade do Advogado à administração da Justiça, sendo esta um reflexo da função social do Advogado.
            Não há que se negar à procedência dos argumentos de Montesquieu aplicado na sociedade moderna, tendo-se em vista que o regime representativo é a organização da confiança pautada na soberania popular ou individual, sendo que o que reina hoje em dia é o abuso de confiança. Considerando que a atuação do advogado representará a vontade da sociedade na defesa dos mais diversos interesses, incide em abuso de confiança e desrespeito a função social o advogado que faltar com a ética no exercício da advocacia nos diversos âmbitos do judiciário. Portanto, a falta ética passa a ser um desrespeito à função social do advogado e à sociedade.
            O que se pode notar é que a vida política e social dos povos, ao longo do tempo, desmentiram as ilusões do regime representativo (mandato) como forma moderna e aperfeiçoada da democracia, mas atualmente esta ganhou um novo ímpeto, com a irresignação popular e individual, incidindo na atuação de órgãos que veem o que os cidadãos leigos não veem, órgãos como a Ordem dos Advogados do Brasil. A OAB, por meio do Conselho de Ética e Disciplina, assumiu o papel norteador de toda forma de conduta do advogado, fazendo-o entender que ele representa muito mais do que um simples ente de uma relação contratual, mas que também faz parte de um corpo moral e coletivo esperado por toda sociedade.
            A OAB, de certa maneira, abraça a teoria de Montesquieu quando pune o advogado que não segue o Código de Ética e Disciplina da OAB, sendo esta atribuição punitiva uma forma potencializada e melhorada que representa os anseios da sociedade. A OAB age no sentido de selecionar os mais capacitados e austeros profissionais diante da falta de ética que paira na advocacia. É uma benesse à sociedade perpetrada por uma instituição que representa os seus anseios, conforme pregava Montesquieu.
“O povo que possui o poder soberano deve fazer por si mesmo tudo o que pode realizar corretamente, e aquilo que não pode realizar corretamente cumpre que o faça por intermédio de seus ministros. (...) O povo é admirável para escolher aqueles a quem deve confiar parte de sua autoridade” (L. II, Cap. II). 3

            A consciência roedora dos irresignados está representada atualmente na atuação da Ordem dos Advogados do Brasil como forma de coibir virtuais afrontas aos princípios democráticos. A OAB tem uma atribuição muito maior do que uma entidade representativa de classe ou um órgão estritamente jurídico, mas assume o papel de defensora do múnus público atribuído ao advogado, para que este saiba que a sua função social é essencial para a democracia e para a defesa do contrato social.
            O conceito de mandato para o político e para o advogado guarda mais semelhança do que se imagina. Desta feita, a presente analogia busca evidenciar que a promoção do bem comum é objetivo indissociável na outorga de qualquer mandato, seja ele representativo popular ou mesmo um mandado advocatício, representando igual nobreza na busca de uma sociedade livre e justa.


Referência Bibliográfica:


1 - AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. São Paulo: Editora Globo, 1996, pág. 266.

2 - MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat, baron de la Brède et de. O Espírito das Leis. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995, págs. 9 e 10.

3 - ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Editora Martin Claret, 2000, pág. 31.