quinta-feira, 12 de julho de 2012

A PEDAGOGIA EM CONSUMO


            A relação de consumo, como objeto da tutela do direito do consumidor, é reconhecida como de aplicabilidade nos mais diversos setores da economia no Estado brasileiro. Dentre esses setores está a educação, objeto da prestação de um serviço público delegado por meio de autorização pelo poder público. A relação de consumo na prestação de serviços educacionais é facilmente vislumbrada, sobretudo quando ocorre violação ao direito do consumidor.           O problema, no entanto, emerge quando o direito do consumidor desvirtua a vertente acadêmico-pedagógica existente no ato de ensinar, a qual é simplesmente ignorada na ocasião de vários julgamentos em processos judiciais.
            Nesse sentido, pode-se constatar a existência de problemas que contrapõem o direito do consumidor e a própria pedagogia do ensino, a exemplo dos seguintes questionamentos: até que ponto a reprovação de um aluno por insuficiência acadêmica estaria atrelada ao vício na prestação do serviço? Até que ponto o pré-requisito de determinada disciplina pode violar o direito do consumidor? O aluno que é consumidor da prestação de serviços educacionais paga pela carga horária ministrada ou pelo conteúdo efetivamente recebido? O aluno paga pelo conhecimento de um curso ou pelo crédito da oferta deste?
            Evidentemente que várias respostas aos questionamentos acima se imbricam, sobretudo porque é impossível falar, por exemplo, em carga horária sem o seu conteúdo e vice-versa. No entanto, vários desses questionamentos não podem ser respondidos apenas sob o viés do direito do consumidor, sob pena de a pedagogia do ato de ensinar seja alçada à mera análise da relação de consumo.
            Nesse cenário, diante da vasta jurisprudência setorial, não é raro observar várias alegações em processos judiciais que questionam a liberdade de ensinar, a liberdade de aprender, de pesquisar, divulgar a cultura, o pensamento e o próprio saber. Essa liberdade não é aleatória, assim como imaginaria o senso comum, mas decorre da própria natureza principiológica que deu ensejo à Lei de Diretrizes e bases da Educação Nacional (LDB), Lei n.° 9.394, de 20 de dezembro de 1996.
            Com base na premissa acima, pode-se constatar que muitos cursos de ensino superior perpassaram por uma longa construção pedagógico-acadêmica para a sua concepção, ensejando com que o Conselho Nacional de Educação, dentro de suas atribuições institucionais, definisse as chamadas diretrizes curriculares. É justamente dentro dessas diretrizes que se imagina uma boa formação para o acadêmico de cada curso superior.
            Assim, por exemplo, não se espera que um aluno de medicina seja um excelente profissional se o mesmo não tiver passado pelo crivo de estágios curriculares dentro de criteriosos internatos, além de outros vários requisitos não menos importantes. Da mesma forma, não se espera com que um aluno do curso de engenharia tenha o mínimo de qualidade se ficar adstrito tão somente ao conteúdo de sala de aula, motivo pelo qual as diretrizes curriculares do referido curso exige o estágio prático de campo, oportunidade em que será testado em suas expertises (engenharia civil, elétrica, mecânica, agrícola, de pesca, etc.).
            Sendo assim, a prestação de serviços no âmbito do ensino superior deve levar em consideração a construção pedagógico-acadêmica que se exige para a formação do profissional, com respeito aos princípios da liberdade de ensinar e aprender, assim como adjetiva a LDB. É impossível conceber com que um aluno de engenharia tenha uma formação completa apenas com o conteúdo ministrado em sala de aula, devendo que Instituição de Educação Superior (IES) ser instada em sua liberdade de ensinar e do discente em sua liberdade de aprender.
            Embora a concepção acima seja bastante evidente, a prática judicial demonstra que a pedagogia do ensino muitas vezes se choca com os requisitos da mera relação de consumo, fazendo com que o judiciário tenha que fazer uma análise muito mais profícua acerca da prestação de serviços educacionais.
            Há casos, por exemplo, em que uma Instituição de Ensino Superior foi condenada à reparação pelos danos causados a um discente em virtude de seu insucesso na aprovação do internato em medicina, sob o esquálido argumento de ter havido defeito relativo à prestação de serviço em face do resultado que razoavelmente se esperava em relação à sua aprovação, com base no art. 14, §1º, II, do Código de Defesa do Consumidor. Ora, o desiderato da formação do aluno, que muitas vezes não se adéqua às exigências acadêmicas mínimas, jamais poderia estar atrelado à relação de consumo, eis que depende única e exclusivamente do próprio aluno. Se o aluno não estudar ou se esforçar minimamente, a IES não pode ser penalizada em face da alegação do defeito da prestação de serviço, sob pena de a pedagogia e o academicismo serem alçados a um mero apanágio da relação de consumo.
            Em outra situação, uma aluna de uma IES de Florianópolis ajuizou uma ação por danos morais ao argumento central de que não poderia colar grau junto com a sua turma inicial de faculdade, mercê do comportamento da IES que não recebeu o seu relatório de estágio, ficando assim sem nota e inapta a conclusão do curso. Diz que tais fatos lhe causaram sofrimento e abalo moral. A ação foi julgada improcedente pelo simples fato de que a referida aluna deixou de obedecer aos prazos estabelecidos regimentalmente, haja vista que a aluna entregou o seu relatório de estágio supervisionado fora do prazo. Em sua decisão, o juiz da 2ª Vara Cível da Comarca de São José, em Santa Catarina, deixa uma prodigiosa lição que se afigura como um verdadeiro aspecto pedagógico:
    
     A atitude da instituição ré é digna de aplausos, porquanto procurou, e neste caso conseguiu, ensinar que as regras, os regimentos, enfim as normas devem ser rigorosamente obedecidos.
     Data vênia, no atual estágio educacional do Pais, onde a grande maioria desta juventude, demonstra-se despreocupada com tudo e com todos, onde a grande massa dos jovens acham tudo natural, num verdadeiro culto do "tudo pode", do "tudo é natural", deve haver sim conseqüências severas para demonstrar que tal regra não é verdadeira.
     A regra correta é comportar-se de acordo com os "manuais" da vida acadêmica e social. 1
    
            Em outro exemplo não menos elucidativo, um aluno ajuizou recentemente uma ação em face de uma IES, em Brasília, sob argumento de que firmou contrato com a instituição para o fornecimento de uma quantidade estabelecida de créditos, calculados em horas-aula em cada disciplina, mas que tal quantidade de horas-aula não foi adimplida. O discente pediu a condenação em dano material e repetição do indébito consumerista, pois considerava que todas as disciplinas ficaram devendo horas.
            O aluno, egresso do curso de direito e advogando em causa própria, imaginou ter criado uma tese nova, fundado em tênue cálculo aritmético com base no calendário letivo e a carga horária das disciplinas optadas, chegando a um resultado que entendia ser divergente da carga horária descrita no histórico escolar. Em um cálculo despropositado, o aluno entendia que cada disciplina teria faltando ao menos 25% do total das aulas, motivo pelo qual pedia ressarcimento em indébito pelo que havia pago e não recebido. Embora contraditório, o aluno reconhecia textualmente que o serviço havia sido indiscutivelmente bem prestado pela IES, o que, inclusive, lhe ensejou a aprovação em seu primeiro exame da Ordem dos Advogados do Brasil.
            No caso vertente, a análise da prestação de serviço não pode ser feita com base única e exclusivamente no Código de Defesa do Consumidor, haja vista que existem variáveis decorrentes do próprio ato de ensinar e da legislação educacional pertinente. Ora, as disciplinas de um curso superior não são mecanicamente cobradas e ministradas por intermédio de horas e valores, mas sim por meio de conteúdos, atividades presenciais, não presenciais e as várias atividades complementares que são prestadas pelas IES.
            Dentro desse cenário, é evidente que o curso de Direito tem uma abordagem muito mais extensa do que a simples presença às aulas previstas no calendário acadêmico e o cômputo das horas vai além daquelas previstas para a sala de aula. O curso é composto de toda uma estrutura que abriga, dentre outras coisas, todas as disciplinas dispostas na matriz curricular agregada de, no mínimo, diversas atividades complementares. Da mesma forma, não se espera com que um aluno do curso de direito tenha o mínimo de qualidade se ficar adstrito tão somente ao conteúdo de sala de aula, motivo pelo qual a diretriz curricular do referido curso exige as chamadas atividades complementares, orientação esta emanada pelo Conselho Nacional de Educação, por meio do Parecer de n.º 261/2006.
            O Conselho Nacional de Educação, por meio do referido Parecer, explicita que “a perspectiva reducionista conduz, por assim dizer, à ‘aulificação’ do saber, isto é, à mensuração do processo educacional em termos de carga horária despendida sem sala de aula, por meio de atividades de preleção.” Nesse caso, é imprescindível pensar no processo educacional como sendo um volume de conhecimento a ser aprendido pelo estudante, o que pode ocorrer mediante formas variadas de transmissão, de acordo com a especificidade do curso e em conformidade com o seu projeto pedagógico.
            Com base nos fundamentos acima, o d. juízo do 3° Juizado Especial da Circunscrição Judiciária de Brasília indeferiu o pedido do aluno, com base em uma criteriosa sentença, a qual merece menção:
           
            A relação jurídica estabelecida entre as partes é de natureza consumerista, devendo a controvérsia ser solucionada sob o prisma do sistema jurídico autônomo instituído pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/1990).
            Contudo, entendo que o ato de ensinar apresenta particularidades que superam a mera prestação dos serviços tal como entendida pelo Código de Defesa do Consumidor, porquanto vigoram os princípios da lei de diretrizes e bases nº 9.394/96, tais como o da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; o respeito à liberdade e apreço à tolerância, dentre outros.
            Nesse passo, embora cabível a inversão do ônus da prova, nos termos do inciso VIII do art. 6º do CDC, esta não se resume à comprovação de que a faculdade ofereceu as aulas supostamente faltantes, mas à demonstração de que o conteúdo programático foi efetivamente prestado.
            Em que pesem as alegações do autor, o objetivo principal de um curso de graduação é o comprometimento com o conteúdo programático necessário à formação profissional dos alunos, não existindo qualquer óbice para que as aulas não-ministradas sejam substituídas por atividades extracurriculares ou qualquer outra técnica elaborada pela instituição.
            No caso em questão, pode-se afirmar que o encerramento dos semestres letivos com a aprovação do autor, bem como com a obtenção da carteira da Ordem dos Advogados do Brasil, comprovam a conclusão do conteúdo programático pela requerida.
            Conforme o parecer CNE/CES nº 261/2066 apresentado pelo autor às fls. 33/52, "não são apenas os limites da sala de aula propriamente dita que caracterizam com exclusividade a atividade escolar de que fala a lei. esta se caracterizará por toda e qualquer programação incluída na proposta pedagógica da instituição, com frequência exigível e efetiva orientação dos professores habilitados".
            Assim, comprovada a efetiva prestação dos serviços educacionais, não vislumbro o direito do autor à repetição de indébito anunciada.
            Por fim, tendo em vista o disposto no art. 55 da Lei nº 9.099/95, a análise do pedido de gratuidade de justiça será feita apenas na hipótese de interposição de recurso.
            Ante o exposto, JULGO IMPROCEDENTES OS PEDIDOS iniciais e declaro extinto o processo, com julgamento do mérito, o que faço com fundamento no art. 269, inciso I do Código de Processo Civil. 2

            Em que pese a particularidade do caso, o mesmo reflete a tendência da jurisprudência nacional, que vem gradativamente consolidando entendimento no sentido de privilegiar a vertente acadêmico-pedagógica dos cursos de educação superior, robustamente lastreada naquilo que é balizado no âmbito do Conselho Nacional de Educação.
            Nesse sentido, se um dos objetivos da educação é ser vetor de transformação intelectual e qualificação pessoal, resta claro que o aspecto pedagógico do ato de ensinar não pode ficar atrelado à estrita pedagogia do consumo, a qual pode levar a educação a resultados catastróficos. Se a vertente acadêmico-pedagógica da prestação de serviços educacionais não for observada na ocasião de julgamentos de processos pertinentes à relação de consumo, é bem possível que daqui a alguns anos a educação se transforme em singelas pílulas de conhecimento. Dentro desse cenário, é possível imaginar o aluno chegando à IES e adquirindo crédito pedagógico (crédito para aquisição do saber), assim como quem chega em uma banca de revistas e pede para comprar créditos para o seu aparelho celular. Será esse o futuro da educação superior? Acredito que não!


Referências:

1. Processo n° 064.10.500681-9. Ação: Reparação de Danos/Ordinário. 2ª Vara Cível da Comarca de São José, em Santa Catarina.

2. Processo n.° 2012.01.1.007171-6, em trâmite no 3º Juizado Especial Cível da Circunscrição Judiciária de Brasília.

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