quinta-feira, 5 de julho de 2012

ANÁLISE SOBRE OS LIMITES DA AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA EM FACE DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR


            A temática referente aos limites da autonomia universitária em face do Código de Defesa do Consumidor entrou na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) em virtude do reconhecimento da repercussão geral da matéria, objeto do Recurso Extraordinário (RE) de n.° 641005, os qual servirá de paradigma de aplicação em ações judiciais semelhantes em todas as instâncias do Poder Judiciário.
             O referido recurso é originário de um processo que envolve uma Instituição de Educação Superior (IES) e a Associação de Proteção e Assistência ao Cidadão (Aspac), ambas de Pernambuco, em que se discute se o pagamento de mensalidade deve ser efetuado de forma proporcional à quantidade de disciplinas cursadas pelos alunos. Para o Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), o contrato de prestação de serviços educacionais está sujeito ao Código de Defesa do Consumidor e, por isso, deve haver equivalência entre o serviço prestado e a contraprestação paga. De acordo com o TJPE, “o regime pedagógico adotado pela universidade não pode se sobrepor à lei, mas sim adequar-se aos preceitos por ela estabelecidos.”
            O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, reconheceu a repercussão geral da matéria sob a perspectiva de violação do art. 5º, LV, art. 207, caput, e 209 da Constituição da República, fundamentos estes invocados em defesa da referida Instituição de Ensino Superior.
            Em que pese a discussão invocar uma robusta temática (autonomia universitária versus direito do consumidor), na prática a discussão é absolutamente assimétrica, haja vista que a concepção e o exercício da autonomia universitária não implica em absoluto a violação do direito do consumidor. Discutir limites da autonomia universitária sob o viés da defesa do consumidor é tentar desvirtuar o próprio conceito de autonomia universitária, o qual é taxado pelo senso comum como algo que se sobreporia ao Código de Defesa do Consumidor, embora tais conceitos não se imbriquem. Para compreender tais afirmações, urge explicitar o que venha a ser a tão falada autonomia universitária.
            A Constituição da República, em seu art. 207, estabelece em seu caput:
Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.

            O objetivo da autonomia universitária, conforme se subsume do referido preceito constitucional, é assegurar a liberdade de crítica e a livre produção e transmissão do conhecimento, tornando as universidades impermeáveis a ingerências econômicas, políticas ou religiosas estranhas ao desenvolvimento do ensino, pesquisa e extensão. 
            Observe-se que o texto constitucional estabelece que a autonomia universitária não é irrestrita ou incondicional, mas é compreendida como um instrumento que encontra limites no atendimento aos fins específicos para os quais as universidades se destinam, sem que isso implique na violação dos direitos mais básicos ligados à atividade da Instituições de Educação Superior, tais como: direitos trabalhistas, civis, consumeristas, entre outros.
            Ainda com espeque constitucional, a autonomia universitária está adstrita ao aspecto didático-científico (liberdade para definir currículos, abrir ou encerrar cursos, linhas de pesquisas, entre outras), administrativo (liberdade para estabelecer a organização interna, a exemplo da aprovação de estatuto e regimentos) e de gestão financeira e patrimonial (liberdade para estabelecer os mecanismos de custeio, dotação orçamentária, aplicação de recursos, etc.). A autonomia também não significa independência, haja vista que todas as atribuições das universidades são objeto de fiscalização pelo poder público, o qual pode, inclusive, suspender ou revogar essa autonomia.
            Para sistematizar o alcance e os limites da autonomia, o art. 53 da Lei n.° 9.394, de 20 de dezembro de 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), estabelece de maneira clara as atribuições das universidades no exercício da referida autonomia. O citado artigo evidencia que a liberdade da autonomia universitária é ampla dentro do limites estabelecidos pela LDB, não podendo jamais se compreender que a referida autonomia seja ampla ao ponto de poder violar direitos mais comezinhos, como direito do consumidor, trabalhista, civil, etc.
            Por outro lado, a autonomia universitária é dotada de um pressuposto que encerra qualquer discussão sobre o entendimento equivocado acerca de seus limites. Dentro desse pressuposto, questiona-se: que tipo de instituição possui a prerrogativa da autonomia universitária? Todas as Instituições de Educação Superior? Evidentemente que não!
            O exercício da autonomia é outorgado pelo Estado, a quem cabe autorizar e avaliar o seu funcionamento, conforme estabelece a Constituição da República. Seguindo essa sistemática, o Decreto n.° 5.773, de 9 de maio de 2006, que dispõe sobre o exercício das funções de regulação, supervisão e avaliação de instituições de educação superior, estabelece que as IES podem ser credenciadas em três níveis de organização acadêmica: faculdades, centros universitários e universidades. Dentro desses níveis, apenas os centros universitários e universidades possuem a chamada autonomia universitária.
            Sendo assim, nos termos da legislação de regência, as faculdades, que são maioria esmagadora no país, jamais possuíram qualquer elemento de autonomia universitária, haja vista que tal prerrogativa legal é apenas concedida aos centros universitários e às universidades. Para que uma faculdade possa ser agraciada com a autonomia universitária terá que ser credenciada como centro universitário e, se for de sua opção, granjear até mesmo o credenciamento como universidade. As condições necessárias para que uma faculdade possa ser credenciada como centro universitário estão previstas na Resolução do Conselho Nacional de Educação CNE/CES de n.° 10/2007, a qual foi objeto de revisão por meio dos Pareceres CNE/CES n.° 60/2009 e 143/2009.
            Ora, se uma faculdade não possui autonomia universitária, haja vista que essa prerrogativa não lhe é legalmente facultada, jamais teria como escudar-se na referida autonomia para fazer valer qualquer tipo de imposição, muito menos imposição que seja contrária ao direito do consumidor, trabalhista, civil, etc. Nesse sentido, por exemplo, se uma faculdade for instada judicialmente por cobrar mensalidade de forma equivocada, a discussão judicial jamais poderia estar adstrita à autonomia universitária, eis que uma faculdade não possui tal autonomia, razão pela qual a referida discussão restringir-se-ia apenas sob o enfoque consumerista e sob o enfoque da liberdade legal que assiste a qualquer IES estabelecer a sua forma de contraprestação pelo serviço prestado. 
            Sendo assim, o Tribunal de Justiça de Pernambuco, ao explicitar que “o regime pedagógico adotado pela universidade não pode se sobrepor à lei, mas sim adequar-se aos preceitos por ela estabelecidos”, equivoca-se quanto à análise do que está sendo discutido judicialmente, a começar pelo fato de que a demandada era uma faculdade e não uma universidade. Amiúde tal discussão, neste caso, resta patente que em momento algum a autonomia universitária poderia ser instada como mecanismo de violação do direito do consumidor, eis que faculdade simplesmente não possui autonomia universitária.
            A matéria levada ao Supremo Tribunal Federal, citada no início, em que se discute se o pagamento de mensalidade deve ser efetuado de forma proporcional à quantidade de disciplinas cursadas pelos alunos, jamais poderia ser objeto de um embate constitucional intitulado autonomia universitária versus direito do consumidor, eis que, no referido caso, a questão relacionada com o pagamento de mensalidades não é inerente à prerrogativa de autonomia universitária e sim uma prerrogativa legal atribuída a qualquer Instituição de Educação Superior, tenha ela autonomia universitária ou não.
            A cobrança de mensalidades ou anuidades escolares é prevista na Lei n.° 9.870, de 23 de novembro de 1999, que estabelece os mecanismos de composição e cobrança das mensalidades ou anuidades. Sendo assim, a prerrogativa que uma faculdade ou uma universidade tem para estabelecer mecanismos de cobrança de mensalidades ou anuidades escolares nada diz respeito à autonomia universitária, assim como equivocadamente sugere a discussão encetada no STF.
            Ao que se subsume da análise acima, o foco da discussão no STF está aparentemente equivocado, pois não se trata de discutir os limites da autonomia universitária em face do Código de Defesa do Consumidor, como ficou consignado acima. A discussão que o STF deve ater-se está adstrita ao princípio da hierarquia das normas, na perspectiva de analisar até que ponto o Código de Defesa do Consumidor, que é uma Lei Ordinária, pode se sobrepor a outra Lei Ordinária, no caso, a Lei n.° 9.870, de 23 de novembro de 1999, que disciplina a cobrança de mensalidades ou anuidades escolares.
            Nesse sentido, se uma faculdade, dentro de sua liberalidade de gestão, que nada tem a ver com autonomia universitária, sobretudo porque faculdade não tem tal autonomia, decide cobrar mensalidade em estrito cumprimento à Lei n.° 9.870, de 23 de novembro de 1999, não há como inferir que tenha violado o Código de Defesa do Consumidor. Alegar que o contrato de prestação de serviços educacionais esteja sujeito ao Código de Defesa do Consumidor é restringir a discussão, haja vista que em momento algum as IES afirmam o contrário, conforme jurisprudência cogente, mas o contrato também está afeto às regras insertas na Lei n.° 9.870, de 23 de novembro de 1999.
            Amiúde tal discussão, ao contrário da conclusão do Tribunal de Justiça de Pernambuco, a mensuração da equivalência entre o serviço prestado e a contraprestação paga não está adstrita apenas ao Código de Defesa do Consumidor, mas também à Lei que regulamenta as mensalidades e anuidades escolares (Lei n.° 9.870, de 1999), sob pena de chegarmos à penosa conclusão de que determinada lei ordinária poderia se sobrepor a outra de igual quilate, ou seja, que o Código de Defesa do Consumidor se sobreporia à Lei n.° 9.870, de 1999, o que evidentemente deve ser rechaçado pelo Supremo Tribunal Federal.
            Portanto, de acordo com a análise acima, resta patente que a discussão no STF acerca de mensalidades escolares não deve servir de ensejo para ampliar tal análise sobre os limites da autonomia universitária, haja vista que são discussões totalmente diversas, conforme consignado acima. Resta claro que tal autonomia é restrita e prevista na própria Constituição da República, não podendo ser confundida com a liberdade de dispor de direitos que não pertencem às IES, razão pela qual não há como fazer a ilação de que a autonomia universitária possa violar direito do consumidor, trabalhista, civil, etc.
            A discussão no Supremo Tribunal Federal deve render observância à possibilidade de o Código de Defesa do Consumidor, que é uma Lei Ordinária, poder se sobrepor a outra Lei Ordinária, no caso, a Lei n.° 9.870, de 23 de novembro de 1999, que disciplina a cobrança de mensalidades ou anuidades escolares, conforme explicitado alhures. O debate em torno da autonomia universitária, ao ensejo da pretensa discussão acerca da cobrança das mensalidades escolares, pode se afigurar como um temeroso caminho no sentido de restringir a referida autonomia por meio de um mecanismo bastante enviesado na Suprema Corte do nosso país.

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