terça-feira, 24 de julho de 2012

IMUNIDADE E ISENÇÃO TRIBUTÁRIA COMO MECANISMO DE REGULAÇÃO SETORIAL



O efeito extrafiscal da norma tributária utiliza-se do instrumento financeiro para a provocação de certos resultados econômico-sociais, como reprimir a inflação, evitar o desemprego, restaurar a prosperidade, proteger a indústria nacional, promover o desenvolvimento econômico, nivelar as fortunas ou corrigir a iniquidade na distribuição da renda nacional e, sobretudo, promover o acesso à educação superior, além de outros objetivos igualmente importantes.
            Nesse sentido, a extrafiscalidade da norma tributária fornece a explicação ao fato de que, praticamente, todos os problemas que convergem para a área do tributo podem ser estudados do o ângulo oposto: o da isenção e da imunidade. Tal possibilidade apresenta certa simetria com o poder de tributar.
            Na doutrina pátria, sobejam conceitos de imunidade e principalmente de isenção, que variam conforme o conceito unitário ou dualista de tributo adotado. A imunidade é tida como limitação ao poder de tributar ou como norma de estrutura, que subordina a feitura de normas de comportamento. A isenção, como dispensa do pagamento de tributo devido, norma de estrutura e norma de não-incidência é uma forma excludente da obrigação.
            Para Calmon Navarro Coêlho, a isenção, tal qual a imunidade, é “simples previsão legislativa de intributabilidade”1, é regra que atua juntamente com as previsões impositivas, no aspecto material da norma tributária, definindo sua dimensão. O autor propõe que a hipótese da norma tributária seja composta por “fatos tributáveis” (segundo a regra impositiva), subtraídos os fatos isentos e imunes.
            Sacha Calmon Navarro Coêlho, em prestígio à técnica jurídica, distingue a isenção e a imunidade dos demais institutos exoneratórios, portanto aquelas atuam no campo da hipótese da norma tributária, enquanto os estes atuam na consequência da norma. A distinção essencial entre a imunidade e a isenção para o jurista mineiro é o status constitucional da imunidade, inexistente na isenção. Destaca-se também que a imunidade é, inequivocamente, instituto que delimita a competência tributária impositiva.
            Com relação ao fundamento ontológico, isenções e imunidades também apresentam aspectos em comum. Podem existir, segundo Marcus Gouvêa2:
1)      como instrumento em favor da capacidade contributiva, para adequar a previsão genérica e abstrata da norma impositiva;
2)      ou, como instrumento de política pública, independente da capacidade econômica dos contribuintes. No primeiro caso, tem-se a imunidade recíproca e aquela que beneficia particulares que exercem munus público, como a dirigida a instituições de educação e de assistência social sem fins lucrativos e a isenção da primeira faixa de renda do IRPF (Imposto de Renda Pessoa Física), que protege o chamado mínimo existencial.

            No segundo grupo, encontra-se a imunidade dos livros, revistas e periódicos, que, não obstante possam representar mercado promissor constituem-se veículo de cultura que o Estado pretende preservar, assim como isenções a determinados produtos, cujo mercado incipiente o Estado quer estimular.
            As isenções podem ser classificadas em condicionais e incondicionais, temporárias e por prazo indeterminado, gerais e individuais, regionais ou irrestritas. A isenção incondicional é aquela que independe da comprovação do preenchimento de qualquer requisito pelo contribuinte, a ser avaliada pelo fisco. É o caso da isenção da primeira faixa de renda do imposto de renda da pessoa física. A isenção condicional é que depende do preenchimento de algum requisito pelo contribuinte, seja a realização de uma conduta, seja uma situação jurídica, seja uma situação fática. Necessariamente, as isenções incondicionadas serão gerais, alcançando todos os contribuintes ou fatos, conforme seja o benefício subjetivo ou objetivo. As isenções condicionais serão individuais e dependerão da análise de cada caso pela Administração Tributária.
            A isenção pode, também, ser temporária, com prazo preestabelecido, mas pode ser fixada por tempo indeterminado, facultando-se sua revogação por lei posterior ou sua extinção por ato administrativo, se o beneficiário deixou de cumprir os requisitos para sua concessão.
            O Código Tributário Nacional (CTN), em seu art. 176, parágrafo único, dispõe que “a isenção pode ser restrita a determinada região do território da entidade tributante, em função de condições a ela peculiares.” Em regra, restringe-se aos impostos, conforme disposição do art. 177 também do CTN.
            As imunidades aplicam-se, em regra, aos impostos. Algumas são gerais, sem a imposição de condições. Por exemplo, as dos partidos políticos, que têm efeito extrafiscal ligado à organização política nacional. Outras, como as das instituições de educação sem fins lucrativos, que prestigiam a finalidade extrafiscal de incentivo à educação, são reconhecidas apenas àqueles que comprovem o preenchimento dos requisitos legais (art. 14 do CTN).
            Também há imunidades relativas apenas a contribuições para a seguridade social, que prestigiam as entidades beneficentes de assistência social. Como sói ocorrer, a Constituição da República reconhece a intributabilidade de pessoa privada que se dedica a prestar assistência social gratuita, que é dever do próprio Estado. Assim, a norma contém efeito extrafiscal de estímulo à atividade assistencial.
            De acordo com a classificação, imunidades e isenções apresentam efeitos extrafiscais distintos. O efeito de indução do comportamento mediante vantagem fiscal será específico a determinados contribuintes que preenchem os requisitos legais, se a isenção for individual. Será geral nas isenções gerais.
            É importante dizer que mesmo a isenção geral pode vir dotada de carga extrafiscal. Por exemplo, se direcionada, objetivamente, à produção do álcool combustível, estimula seu consumo em prejuízo do consumo de gasolina. Se direcionada, subjetivamente, aos fabricantes de malhas têxteis, favorece o aparecimento de indústrias desse tipo de vestuário em detrimento dos curtumes.
            O efeito extrafiscal de isenções pode ser regionalizado em favor do desenvolvimento de certas partes do país ou do estado, conforme o benefício seja federal ou estadual. Porém, pode ser irrestrito territorialmente, quando os efeitos extrafiscais fazem-se sentir em todo o território do ente federado.
            Pode-se inferir que de uma forma geral a justificativa doutrinária para a existência das normas imunizantes e isencionais está ligada a conceitos de natureza política e social de determinada sociedade em dado período histórico, com a finalidade de garantir as liberdades individuais, via exoneração de tributos, para não embaraçar a existência de direitos socialmente relevantes. Assim, as normas de impedimento da competência tributária voltam-se para a liberdade de expressão, o acesso à cultura e à liberdade religiosa. Além disso, voltam-se às atividades desempenhadas pelas instituições de educação e assistência social sem lucratividade, às entidades sindicais de trabalhadores, partidos políticos e suas fundações.
            Para justificar a necessária existência das normas imunizantes e isencionais, Regina Helena Costa invoca a teoria da densificação das normas constitucionais concebida por Canotilho, entendendo que as normas imunizantes densificam princípios estruturantes no sentido jurídico-constitucional e político-constitucional. Portanto:
(...) os princípios federativo e da autonomia municipal são densificados pela imunidade recíproca; que o princípio da isonomia é densificado pela imunidade conferida às instituições de educação e assistência social sem fins lucrativos; que o princípio do pluralismo partidário é densificado pela imunidade outorgada aos partidos políticos; que a liberdade de expressão e o livre acesso à cultura são densificados pela imunidade referente aos livros; que a liberdade de culto é densificada pela imunidade dos templos – e assim por diante. 3

            Pode-se entender, portanto, que as imunidades e isenções são meios de realização de extrafiscalidade no âmbito constitucional. Nesse sentido o magistério de Geraldo Ataliba assenta que a extrafiscalidade “(...) consiste no uso de instrumentos tributários para obtenção de finalidades não-arrecadatórias, mas estimulantes, indutoras ou coibidoras de comportamentos, tendo em vista outros fins, a realização de outros valores constitucionalmente consagrados.”4 Então, pode-se afirmar que os princípios mais valorosos inseridos na Constituição, tais como a segurança jurídica, a justiça e o bem comum, relacionados aos direitos fundamentais, estão presentes essencialmente na imunidade e isenção tributária, cuja natureza é extrafiscal.
            As imunidades tributárias são normas de proteção de outros direitos fundamentais e constituem, ao mesmo tempo, direitos e garantias de outros direitos e firmam-se com o teor do art. XIX da Declaração Universal dos Direitos Humanos5: “Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”.
            De uma forma geral, verifica-se que isenções e imunidades atuam estimulando comportamentos mediante a redução da carga tributária, razão pela qual constata-se, que os institutos apresentam potencialidade extrafiscal marcante.
            Por fim, pode-se concluir que a imunidade e isenção fiscal são temas muito abrangentes, de forma a englobar uma série de outros conteúdos morais, sociais, etc., os quais fazem da mesma uma temática, além de importante, por deveras motivante. Motivação expressa de modo mais agradável na eficiente distinção feita por meio de uma simples parábola que assim distingue os dois institutos: A isenção fiscal é como se o contribuinte segurasse um guarda-chuva no meio de uma tempestade. O guarda-chuva seria a isenção que asseguraria ao contribuinte ficar amparado da chuva, que seria a carga tributária. No caso da imunidade, não haveria chuva jamais!

 Referência Bibliográfica

1. COELHO, Sacha Calmon Navarro. Teoria geral do tributo e da exoneração tributária. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 153.
2. GOUVÊA, Marcus de Freitas. A extrafiscalidade no direito tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 211.
3. COSTA, Regina Helena. Imunidades tributárias. São Paulo: Dialética, 2001, p. 59.
4. ATALIBA, Geraldo. IPTU e progressividade. RDP 93/223.
5.  COSTA, Regina Helena. Idem. p. 85.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

A PEDAGOGIA EM CONSUMO


            A relação de consumo, como objeto da tutela do direito do consumidor, é reconhecida como de aplicabilidade nos mais diversos setores da economia no Estado brasileiro. Dentre esses setores está a educação, objeto da prestação de um serviço público delegado por meio de autorização pelo poder público. A relação de consumo na prestação de serviços educacionais é facilmente vislumbrada, sobretudo quando ocorre violação ao direito do consumidor.           O problema, no entanto, emerge quando o direito do consumidor desvirtua a vertente acadêmico-pedagógica existente no ato de ensinar, a qual é simplesmente ignorada na ocasião de vários julgamentos em processos judiciais.
            Nesse sentido, pode-se constatar a existência de problemas que contrapõem o direito do consumidor e a própria pedagogia do ensino, a exemplo dos seguintes questionamentos: até que ponto a reprovação de um aluno por insuficiência acadêmica estaria atrelada ao vício na prestação do serviço? Até que ponto o pré-requisito de determinada disciplina pode violar o direito do consumidor? O aluno que é consumidor da prestação de serviços educacionais paga pela carga horária ministrada ou pelo conteúdo efetivamente recebido? O aluno paga pelo conhecimento de um curso ou pelo crédito da oferta deste?
            Evidentemente que várias respostas aos questionamentos acima se imbricam, sobretudo porque é impossível falar, por exemplo, em carga horária sem o seu conteúdo e vice-versa. No entanto, vários desses questionamentos não podem ser respondidos apenas sob o viés do direito do consumidor, sob pena de a pedagogia do ato de ensinar seja alçada à mera análise da relação de consumo.
            Nesse cenário, diante da vasta jurisprudência setorial, não é raro observar várias alegações em processos judiciais que questionam a liberdade de ensinar, a liberdade de aprender, de pesquisar, divulgar a cultura, o pensamento e o próprio saber. Essa liberdade não é aleatória, assim como imaginaria o senso comum, mas decorre da própria natureza principiológica que deu ensejo à Lei de Diretrizes e bases da Educação Nacional (LDB), Lei n.° 9.394, de 20 de dezembro de 1996.
            Com base na premissa acima, pode-se constatar que muitos cursos de ensino superior perpassaram por uma longa construção pedagógico-acadêmica para a sua concepção, ensejando com que o Conselho Nacional de Educação, dentro de suas atribuições institucionais, definisse as chamadas diretrizes curriculares. É justamente dentro dessas diretrizes que se imagina uma boa formação para o acadêmico de cada curso superior.
            Assim, por exemplo, não se espera que um aluno de medicina seja um excelente profissional se o mesmo não tiver passado pelo crivo de estágios curriculares dentro de criteriosos internatos, além de outros vários requisitos não menos importantes. Da mesma forma, não se espera com que um aluno do curso de engenharia tenha o mínimo de qualidade se ficar adstrito tão somente ao conteúdo de sala de aula, motivo pelo qual as diretrizes curriculares do referido curso exige o estágio prático de campo, oportunidade em que será testado em suas expertises (engenharia civil, elétrica, mecânica, agrícola, de pesca, etc.).
            Sendo assim, a prestação de serviços no âmbito do ensino superior deve levar em consideração a construção pedagógico-acadêmica que se exige para a formação do profissional, com respeito aos princípios da liberdade de ensinar e aprender, assim como adjetiva a LDB. É impossível conceber com que um aluno de engenharia tenha uma formação completa apenas com o conteúdo ministrado em sala de aula, devendo que Instituição de Educação Superior (IES) ser instada em sua liberdade de ensinar e do discente em sua liberdade de aprender.
            Embora a concepção acima seja bastante evidente, a prática judicial demonstra que a pedagogia do ensino muitas vezes se choca com os requisitos da mera relação de consumo, fazendo com que o judiciário tenha que fazer uma análise muito mais profícua acerca da prestação de serviços educacionais.
            Há casos, por exemplo, em que uma Instituição de Ensino Superior foi condenada à reparação pelos danos causados a um discente em virtude de seu insucesso na aprovação do internato em medicina, sob o esquálido argumento de ter havido defeito relativo à prestação de serviço em face do resultado que razoavelmente se esperava em relação à sua aprovação, com base no art. 14, §1º, II, do Código de Defesa do Consumidor. Ora, o desiderato da formação do aluno, que muitas vezes não se adéqua às exigências acadêmicas mínimas, jamais poderia estar atrelado à relação de consumo, eis que depende única e exclusivamente do próprio aluno. Se o aluno não estudar ou se esforçar minimamente, a IES não pode ser penalizada em face da alegação do defeito da prestação de serviço, sob pena de a pedagogia e o academicismo serem alçados a um mero apanágio da relação de consumo.
            Em outra situação, uma aluna de uma IES de Florianópolis ajuizou uma ação por danos morais ao argumento central de que não poderia colar grau junto com a sua turma inicial de faculdade, mercê do comportamento da IES que não recebeu o seu relatório de estágio, ficando assim sem nota e inapta a conclusão do curso. Diz que tais fatos lhe causaram sofrimento e abalo moral. A ação foi julgada improcedente pelo simples fato de que a referida aluna deixou de obedecer aos prazos estabelecidos regimentalmente, haja vista que a aluna entregou o seu relatório de estágio supervisionado fora do prazo. Em sua decisão, o juiz da 2ª Vara Cível da Comarca de São José, em Santa Catarina, deixa uma prodigiosa lição que se afigura como um verdadeiro aspecto pedagógico:
    
     A atitude da instituição ré é digna de aplausos, porquanto procurou, e neste caso conseguiu, ensinar que as regras, os regimentos, enfim as normas devem ser rigorosamente obedecidos.
     Data vênia, no atual estágio educacional do Pais, onde a grande maioria desta juventude, demonstra-se despreocupada com tudo e com todos, onde a grande massa dos jovens acham tudo natural, num verdadeiro culto do "tudo pode", do "tudo é natural", deve haver sim conseqüências severas para demonstrar que tal regra não é verdadeira.
     A regra correta é comportar-se de acordo com os "manuais" da vida acadêmica e social. 1
    
            Em outro exemplo não menos elucidativo, um aluno ajuizou recentemente uma ação em face de uma IES, em Brasília, sob argumento de que firmou contrato com a instituição para o fornecimento de uma quantidade estabelecida de créditos, calculados em horas-aula em cada disciplina, mas que tal quantidade de horas-aula não foi adimplida. O discente pediu a condenação em dano material e repetição do indébito consumerista, pois considerava que todas as disciplinas ficaram devendo horas.
            O aluno, egresso do curso de direito e advogando em causa própria, imaginou ter criado uma tese nova, fundado em tênue cálculo aritmético com base no calendário letivo e a carga horária das disciplinas optadas, chegando a um resultado que entendia ser divergente da carga horária descrita no histórico escolar. Em um cálculo despropositado, o aluno entendia que cada disciplina teria faltando ao menos 25% do total das aulas, motivo pelo qual pedia ressarcimento em indébito pelo que havia pago e não recebido. Embora contraditório, o aluno reconhecia textualmente que o serviço havia sido indiscutivelmente bem prestado pela IES, o que, inclusive, lhe ensejou a aprovação em seu primeiro exame da Ordem dos Advogados do Brasil.
            No caso vertente, a análise da prestação de serviço não pode ser feita com base única e exclusivamente no Código de Defesa do Consumidor, haja vista que existem variáveis decorrentes do próprio ato de ensinar e da legislação educacional pertinente. Ora, as disciplinas de um curso superior não são mecanicamente cobradas e ministradas por intermédio de horas e valores, mas sim por meio de conteúdos, atividades presenciais, não presenciais e as várias atividades complementares que são prestadas pelas IES.
            Dentro desse cenário, é evidente que o curso de Direito tem uma abordagem muito mais extensa do que a simples presença às aulas previstas no calendário acadêmico e o cômputo das horas vai além daquelas previstas para a sala de aula. O curso é composto de toda uma estrutura que abriga, dentre outras coisas, todas as disciplinas dispostas na matriz curricular agregada de, no mínimo, diversas atividades complementares. Da mesma forma, não se espera com que um aluno do curso de direito tenha o mínimo de qualidade se ficar adstrito tão somente ao conteúdo de sala de aula, motivo pelo qual a diretriz curricular do referido curso exige as chamadas atividades complementares, orientação esta emanada pelo Conselho Nacional de Educação, por meio do Parecer de n.º 261/2006.
            O Conselho Nacional de Educação, por meio do referido Parecer, explicita que “a perspectiva reducionista conduz, por assim dizer, à ‘aulificação’ do saber, isto é, à mensuração do processo educacional em termos de carga horária despendida sem sala de aula, por meio de atividades de preleção.” Nesse caso, é imprescindível pensar no processo educacional como sendo um volume de conhecimento a ser aprendido pelo estudante, o que pode ocorrer mediante formas variadas de transmissão, de acordo com a especificidade do curso e em conformidade com o seu projeto pedagógico.
            Com base nos fundamentos acima, o d. juízo do 3° Juizado Especial da Circunscrição Judiciária de Brasília indeferiu o pedido do aluno, com base em uma criteriosa sentença, a qual merece menção:
           
            A relação jurídica estabelecida entre as partes é de natureza consumerista, devendo a controvérsia ser solucionada sob o prisma do sistema jurídico autônomo instituído pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/1990).
            Contudo, entendo que o ato de ensinar apresenta particularidades que superam a mera prestação dos serviços tal como entendida pelo Código de Defesa do Consumidor, porquanto vigoram os princípios da lei de diretrizes e bases nº 9.394/96, tais como o da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; o respeito à liberdade e apreço à tolerância, dentre outros.
            Nesse passo, embora cabível a inversão do ônus da prova, nos termos do inciso VIII do art. 6º do CDC, esta não se resume à comprovação de que a faculdade ofereceu as aulas supostamente faltantes, mas à demonstração de que o conteúdo programático foi efetivamente prestado.
            Em que pesem as alegações do autor, o objetivo principal de um curso de graduação é o comprometimento com o conteúdo programático necessário à formação profissional dos alunos, não existindo qualquer óbice para que as aulas não-ministradas sejam substituídas por atividades extracurriculares ou qualquer outra técnica elaborada pela instituição.
            No caso em questão, pode-se afirmar que o encerramento dos semestres letivos com a aprovação do autor, bem como com a obtenção da carteira da Ordem dos Advogados do Brasil, comprovam a conclusão do conteúdo programático pela requerida.
            Conforme o parecer CNE/CES nº 261/2066 apresentado pelo autor às fls. 33/52, "não são apenas os limites da sala de aula propriamente dita que caracterizam com exclusividade a atividade escolar de que fala a lei. esta se caracterizará por toda e qualquer programação incluída na proposta pedagógica da instituição, com frequência exigível e efetiva orientação dos professores habilitados".
            Assim, comprovada a efetiva prestação dos serviços educacionais, não vislumbro o direito do autor à repetição de indébito anunciada.
            Por fim, tendo em vista o disposto no art. 55 da Lei nº 9.099/95, a análise do pedido de gratuidade de justiça será feita apenas na hipótese de interposição de recurso.
            Ante o exposto, JULGO IMPROCEDENTES OS PEDIDOS iniciais e declaro extinto o processo, com julgamento do mérito, o que faço com fundamento no art. 269, inciso I do Código de Processo Civil. 2

            Em que pese a particularidade do caso, o mesmo reflete a tendência da jurisprudência nacional, que vem gradativamente consolidando entendimento no sentido de privilegiar a vertente acadêmico-pedagógica dos cursos de educação superior, robustamente lastreada naquilo que é balizado no âmbito do Conselho Nacional de Educação.
            Nesse sentido, se um dos objetivos da educação é ser vetor de transformação intelectual e qualificação pessoal, resta claro que o aspecto pedagógico do ato de ensinar não pode ficar atrelado à estrita pedagogia do consumo, a qual pode levar a educação a resultados catastróficos. Se a vertente acadêmico-pedagógica da prestação de serviços educacionais não for observada na ocasião de julgamentos de processos pertinentes à relação de consumo, é bem possível que daqui a alguns anos a educação se transforme em singelas pílulas de conhecimento. Dentro desse cenário, é possível imaginar o aluno chegando à IES e adquirindo crédito pedagógico (crédito para aquisição do saber), assim como quem chega em uma banca de revistas e pede para comprar créditos para o seu aparelho celular. Será esse o futuro da educação superior? Acredito que não!


Referências:

1. Processo n° 064.10.500681-9. Ação: Reparação de Danos/Ordinário. 2ª Vara Cível da Comarca de São José, em Santa Catarina.

2. Processo n.° 2012.01.1.007171-6, em trâmite no 3º Juizado Especial Cível da Circunscrição Judiciária de Brasília.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

ANÁLISE SOBRE OS LIMITES DA AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA EM FACE DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR


            A temática referente aos limites da autonomia universitária em face do Código de Defesa do Consumidor entrou na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) em virtude do reconhecimento da repercussão geral da matéria, objeto do Recurso Extraordinário (RE) de n.° 641005, os qual servirá de paradigma de aplicação em ações judiciais semelhantes em todas as instâncias do Poder Judiciário.
             O referido recurso é originário de um processo que envolve uma Instituição de Educação Superior (IES) e a Associação de Proteção e Assistência ao Cidadão (Aspac), ambas de Pernambuco, em que se discute se o pagamento de mensalidade deve ser efetuado de forma proporcional à quantidade de disciplinas cursadas pelos alunos. Para o Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), o contrato de prestação de serviços educacionais está sujeito ao Código de Defesa do Consumidor e, por isso, deve haver equivalência entre o serviço prestado e a contraprestação paga. De acordo com o TJPE, “o regime pedagógico adotado pela universidade não pode se sobrepor à lei, mas sim adequar-se aos preceitos por ela estabelecidos.”
            O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, reconheceu a repercussão geral da matéria sob a perspectiva de violação do art. 5º, LV, art. 207, caput, e 209 da Constituição da República, fundamentos estes invocados em defesa da referida Instituição de Ensino Superior.
            Em que pese a discussão invocar uma robusta temática (autonomia universitária versus direito do consumidor), na prática a discussão é absolutamente assimétrica, haja vista que a concepção e o exercício da autonomia universitária não implica em absoluto a violação do direito do consumidor. Discutir limites da autonomia universitária sob o viés da defesa do consumidor é tentar desvirtuar o próprio conceito de autonomia universitária, o qual é taxado pelo senso comum como algo que se sobreporia ao Código de Defesa do Consumidor, embora tais conceitos não se imbriquem. Para compreender tais afirmações, urge explicitar o que venha a ser a tão falada autonomia universitária.
            A Constituição da República, em seu art. 207, estabelece em seu caput:
Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.

            O objetivo da autonomia universitária, conforme se subsume do referido preceito constitucional, é assegurar a liberdade de crítica e a livre produção e transmissão do conhecimento, tornando as universidades impermeáveis a ingerências econômicas, políticas ou religiosas estranhas ao desenvolvimento do ensino, pesquisa e extensão. 
            Observe-se que o texto constitucional estabelece que a autonomia universitária não é irrestrita ou incondicional, mas é compreendida como um instrumento que encontra limites no atendimento aos fins específicos para os quais as universidades se destinam, sem que isso implique na violação dos direitos mais básicos ligados à atividade da Instituições de Educação Superior, tais como: direitos trabalhistas, civis, consumeristas, entre outros.
            Ainda com espeque constitucional, a autonomia universitária está adstrita ao aspecto didático-científico (liberdade para definir currículos, abrir ou encerrar cursos, linhas de pesquisas, entre outras), administrativo (liberdade para estabelecer a organização interna, a exemplo da aprovação de estatuto e regimentos) e de gestão financeira e patrimonial (liberdade para estabelecer os mecanismos de custeio, dotação orçamentária, aplicação de recursos, etc.). A autonomia também não significa independência, haja vista que todas as atribuições das universidades são objeto de fiscalização pelo poder público, o qual pode, inclusive, suspender ou revogar essa autonomia.
            Para sistematizar o alcance e os limites da autonomia, o art. 53 da Lei n.° 9.394, de 20 de dezembro de 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), estabelece de maneira clara as atribuições das universidades no exercício da referida autonomia. O citado artigo evidencia que a liberdade da autonomia universitária é ampla dentro do limites estabelecidos pela LDB, não podendo jamais se compreender que a referida autonomia seja ampla ao ponto de poder violar direitos mais comezinhos, como direito do consumidor, trabalhista, civil, etc.
            Por outro lado, a autonomia universitária é dotada de um pressuposto que encerra qualquer discussão sobre o entendimento equivocado acerca de seus limites. Dentro desse pressuposto, questiona-se: que tipo de instituição possui a prerrogativa da autonomia universitária? Todas as Instituições de Educação Superior? Evidentemente que não!
            O exercício da autonomia é outorgado pelo Estado, a quem cabe autorizar e avaliar o seu funcionamento, conforme estabelece a Constituição da República. Seguindo essa sistemática, o Decreto n.° 5.773, de 9 de maio de 2006, que dispõe sobre o exercício das funções de regulação, supervisão e avaliação de instituições de educação superior, estabelece que as IES podem ser credenciadas em três níveis de organização acadêmica: faculdades, centros universitários e universidades. Dentro desses níveis, apenas os centros universitários e universidades possuem a chamada autonomia universitária.
            Sendo assim, nos termos da legislação de regência, as faculdades, que são maioria esmagadora no país, jamais possuíram qualquer elemento de autonomia universitária, haja vista que tal prerrogativa legal é apenas concedida aos centros universitários e às universidades. Para que uma faculdade possa ser agraciada com a autonomia universitária terá que ser credenciada como centro universitário e, se for de sua opção, granjear até mesmo o credenciamento como universidade. As condições necessárias para que uma faculdade possa ser credenciada como centro universitário estão previstas na Resolução do Conselho Nacional de Educação CNE/CES de n.° 10/2007, a qual foi objeto de revisão por meio dos Pareceres CNE/CES n.° 60/2009 e 143/2009.
            Ora, se uma faculdade não possui autonomia universitária, haja vista que essa prerrogativa não lhe é legalmente facultada, jamais teria como escudar-se na referida autonomia para fazer valer qualquer tipo de imposição, muito menos imposição que seja contrária ao direito do consumidor, trabalhista, civil, etc. Nesse sentido, por exemplo, se uma faculdade for instada judicialmente por cobrar mensalidade de forma equivocada, a discussão judicial jamais poderia estar adstrita à autonomia universitária, eis que uma faculdade não possui tal autonomia, razão pela qual a referida discussão restringir-se-ia apenas sob o enfoque consumerista e sob o enfoque da liberdade legal que assiste a qualquer IES estabelecer a sua forma de contraprestação pelo serviço prestado. 
            Sendo assim, o Tribunal de Justiça de Pernambuco, ao explicitar que “o regime pedagógico adotado pela universidade não pode se sobrepor à lei, mas sim adequar-se aos preceitos por ela estabelecidos”, equivoca-se quanto à análise do que está sendo discutido judicialmente, a começar pelo fato de que a demandada era uma faculdade e não uma universidade. Amiúde tal discussão, neste caso, resta patente que em momento algum a autonomia universitária poderia ser instada como mecanismo de violação do direito do consumidor, eis que faculdade simplesmente não possui autonomia universitária.
            A matéria levada ao Supremo Tribunal Federal, citada no início, em que se discute se o pagamento de mensalidade deve ser efetuado de forma proporcional à quantidade de disciplinas cursadas pelos alunos, jamais poderia ser objeto de um embate constitucional intitulado autonomia universitária versus direito do consumidor, eis que, no referido caso, a questão relacionada com o pagamento de mensalidades não é inerente à prerrogativa de autonomia universitária e sim uma prerrogativa legal atribuída a qualquer Instituição de Educação Superior, tenha ela autonomia universitária ou não.
            A cobrança de mensalidades ou anuidades escolares é prevista na Lei n.° 9.870, de 23 de novembro de 1999, que estabelece os mecanismos de composição e cobrança das mensalidades ou anuidades. Sendo assim, a prerrogativa que uma faculdade ou uma universidade tem para estabelecer mecanismos de cobrança de mensalidades ou anuidades escolares nada diz respeito à autonomia universitária, assim como equivocadamente sugere a discussão encetada no STF.
            Ao que se subsume da análise acima, o foco da discussão no STF está aparentemente equivocado, pois não se trata de discutir os limites da autonomia universitária em face do Código de Defesa do Consumidor, como ficou consignado acima. A discussão que o STF deve ater-se está adstrita ao princípio da hierarquia das normas, na perspectiva de analisar até que ponto o Código de Defesa do Consumidor, que é uma Lei Ordinária, pode se sobrepor a outra Lei Ordinária, no caso, a Lei n.° 9.870, de 23 de novembro de 1999, que disciplina a cobrança de mensalidades ou anuidades escolares.
            Nesse sentido, se uma faculdade, dentro de sua liberalidade de gestão, que nada tem a ver com autonomia universitária, sobretudo porque faculdade não tem tal autonomia, decide cobrar mensalidade em estrito cumprimento à Lei n.° 9.870, de 23 de novembro de 1999, não há como inferir que tenha violado o Código de Defesa do Consumidor. Alegar que o contrato de prestação de serviços educacionais esteja sujeito ao Código de Defesa do Consumidor é restringir a discussão, haja vista que em momento algum as IES afirmam o contrário, conforme jurisprudência cogente, mas o contrato também está afeto às regras insertas na Lei n.° 9.870, de 23 de novembro de 1999.
            Amiúde tal discussão, ao contrário da conclusão do Tribunal de Justiça de Pernambuco, a mensuração da equivalência entre o serviço prestado e a contraprestação paga não está adstrita apenas ao Código de Defesa do Consumidor, mas também à Lei que regulamenta as mensalidades e anuidades escolares (Lei n.° 9.870, de 1999), sob pena de chegarmos à penosa conclusão de que determinada lei ordinária poderia se sobrepor a outra de igual quilate, ou seja, que o Código de Defesa do Consumidor se sobreporia à Lei n.° 9.870, de 1999, o que evidentemente deve ser rechaçado pelo Supremo Tribunal Federal.
            Portanto, de acordo com a análise acima, resta patente que a discussão no STF acerca de mensalidades escolares não deve servir de ensejo para ampliar tal análise sobre os limites da autonomia universitária, haja vista que são discussões totalmente diversas, conforme consignado acima. Resta claro que tal autonomia é restrita e prevista na própria Constituição da República, não podendo ser confundida com a liberdade de dispor de direitos que não pertencem às IES, razão pela qual não há como fazer a ilação de que a autonomia universitária possa violar direito do consumidor, trabalhista, civil, etc.
            A discussão no Supremo Tribunal Federal deve render observância à possibilidade de o Código de Defesa do Consumidor, que é uma Lei Ordinária, poder se sobrepor a outra Lei Ordinária, no caso, a Lei n.° 9.870, de 23 de novembro de 1999, que disciplina a cobrança de mensalidades ou anuidades escolares, conforme explicitado alhures. O debate em torno da autonomia universitária, ao ensejo da pretensa discussão acerca da cobrança das mensalidades escolares, pode se afigurar como um temeroso caminho no sentido de restringir a referida autonomia por meio de um mecanismo bastante enviesado na Suprema Corte do nosso país.